
Será despeito, será ciúme? É inveja, certamente!
Estou, portanto, a viver um tempo de contagem decrescente, relativamente a um longo período de baixa, recheada de peripécias e de muitos momentos difíceis a vários níveis, nomeadamente no que concerne a uma solidão opressiva e depressiva.
Não estou, contudo, a "gozar os últimos cartuchos", como parece a algumas pessoas, pois nunca ninguém me ofereceu tal coisa, entendendo 'cartuchos' como doses de doçura e "dolce fare nienti".
De facto, vivi um tempo (alguns meses) em que não fiz absolutamente nada (eu, que sou "tetramãe"!...), mas esses foram, seguramente, os piores dias da minha vida, amargamente consciente de tudo o que devia fazer e sem capacidade para dar um passo, nem que fosse apenas para passar um pano numa superfície com pó, ou para fazer um telefonema, ou para me sentar em frente da televisão... Foram sucessivas e infindáveis doses de 24 horas de cama, com intervalos para higiene e alimentação, até ao ponto de a própria higiene ser, para mim, uma obrigação irritante!...
Desses tempos de choro e de nula vontade de viver guardo uma recordação muito viva, que me faz, agora, querer, principalmente, ter forças para não me voltar a deixar cair no abismo.
E cá estou eu, renovando a minha maneira de pensar, de agir, de escrever, de vestir e de me arranjar, até, por forma a conseguir obter, dos espelhos que refletem o meu corpo e a minha alma, imagens que me sejam agradáveis e me ajudem a rever-me como um ser social, algo que sofreu um longo interregno.
O 'entretanto' que agora se aproxima do fim foi também um período de tomada de consciência de que aqueles de nós que estão profissionalmente ativos olham para quem claudicou sob algumas perspetivas muito duras e difíceis de aceitar por estes últimos. Refiro-me concretamente às repetidas abordagens ao meu aspeto, por parte de quem me via de tempos a tempos. Para os outros, eu estive sempre com ótima cara, mas, curiosamente, também sempre muito melhor do que no encontro anterior, aquele em que me acharam pálida e olheirenta... E, a partir de determinada altura, o meu bom ar, no olhar dos outros, já vigorava há tanto tempo que começaram a surgir comentários jocosos, apontando a minha eventual preguicite, ou 'lambonice', arrastada no aproveitamento desnecessário e desonesto do período de baixa permitido por lei aos doentes oncológicos (período esse que eu não me atreveria a esgotar inadvertidamente, pois é concedido apenas uma vez na vida!).
Foi sempre demasiado penoso para mim ter de me "justificar", como se estivesse a agir fora da lei ou mesmo fora do bom senso. Fartei-me, literalmente, de explicar a dor, o terrível desconforto, o aperto constante, provocados por uma mama que fica melhor se nomeada como 'uma pedra ao peito, dentro de uma armadura de ferro'! E, apesar do meu esforço contrariado mas empenhado, havia quem nem se detivesse a ouvir-me até ao fim..., pois era tão visivelmente evidente que eu estava boa!...
Não ter conseguido aguentar-me a trabalhar, em ambos os anos em que tentei, deveu-se à dolorosa circunstância de eu ter uma prótese de silicone, fibrosada e encapsulada, por baixo da pele e do músculo grande peitoral, os quais, na ausência de qualquer tecido mamário, foram submetidos a 30 tratamentos de radioterapia. A fibrose e a cápsula que se formaram à volta da minha prótese eram do conhecimento do meu cirurgião plástico do IPO, desde a primeira consulta do pós-operatório da minha terceira cirurgia, mas esta situação foi sendo sucessivamente ignorada por ele, que alegou sempre que o meu problema era psicológico!
Os movimentos do tronco, o frio, o stress... fazem contrair-se uma zona já demasiado contraída, e quem tem de aguentar esse aperto sente-se, por vezes, próximo da loucura e, muitas delas, desejando o alívio oferecido pela morte! (É que a mama não sai, para aliviar, quando se chega a casa, como sai o calçado que magoou um dia inteiro ou a dentadura postiça, que se atira irritadamente para um copo...) E isto em momentos em que, ao redor, há quem vá pensando que até acaba por ser bom ter um cancro, desde que ele fique controlado, pois essa é uma maneira de arranjar uns anos de férias à conta!...
Fiz fisioterapia, hidroginástica e massagens caseiras; e tentei aprender a suportar a dor, através de hipnose e técnicas de relaxamento, com uma psicóloga. Nadei algumas vezes, mas era como se levasse muitos quilos ao peito, a puxarem-me para baixo... E sempre que falhava uma sessão de alguma das terapias sentia uma culpa esmagadora, pois já tinham passado anos sobre a primeira cirurgia e todos me diziam que, se quisesse aliviar um pouco a dor, teria de cumprir um programa diário de terapias para o resto da vida...
Valeu-me ter conhecido uma boa série de meninas operadas às mamas, devido a cancro, e com reconstrução, para perceber que andavam a enganar-me (uns sem culpa, mas outros cheios dela!), pois, num universo de cerca de 70 mulheres que sofreram ou sofrem de cancro da mama, só uma revelou dores do género das minhas, eventualmente por ser excessivamente magra, o que não é , de todo, o meu caso. Relativamente à reconstrução, conheço de tudo, em termos de satisfação pessoal, mas tudo se relaciona essencialmente com a questão estética. Há reconstruções verdadeiramente cinco estrelas, em que a nova mama quase não se distingue da natural, mas também há algumas aberrações, e eu encaixo-me mais nesta linha, pois, com o tempo, fui sofrendo algumas intervenções desnecessárias (nomeadamente aquela em que me reduziram a mama contralateral, para me colocarem uma aréola de pele sã na mama nova, com o argumento de que isso era necessário para que a tatuagem pegasse, pois a minha pele não deixaria que isso acontecesse, por ser irradiada...) e a prótese foi-se mexendo, espalmando e comprimindo, contribuindo para que aquilo que devia parecer uma mama tenha ganho um aspeto muito difícil de catalogar!
Eu, no entanto, sempre com aquela minha boa cara..., aquela que muitos me dizem que tenho a toda a hora, mas só porque não dá trabalho falar, todos gostam; dá é trabalho ouvir, e, se me escutassem mesmo, talvez vissem cansaço ou mal-estar nos meus olhos, e, assim, conseguissem oferecer-me algumas palavras de conforto!!!
Outra razão pela qual eu não tive sucesso nas minhas tentativas de voltar a trabalhar foi, por um lado, a falta de suporte legal para me permitirem um regresso gradual, e, por outro, a falta de sensibilidade dos meus superiores hierárquicos, que não procuraram usar a sua autonomia em prol de uma garantia de condições propícias ao retomar de uma rotina que fora abruptamente cortada um ano antes (da primeira vez) e dois anos antes (da segunda), por uma notícia de cancro, com todas as consequências que daí advêm. Assim me tivessem permitido começar com menos e ir aumentando o volume de trabalho e eu já teria lecionado durante dois anos, o que teria sido favorável a ambas as partes. Como as coisas foram feitas, o Estado tem gasto mesmo muito dinheiro, por eu ter tido um cancro, o Estado que, também, não providenciou para que eu não chegasse ao cancro, pois fui-me arrastando durante um ano e meio com corpos estranhos na mama, sem que os médicos tenham pedido um exame mais eficaz no diagnóstico do que a mamografia. Felizmente, ainda fui a tempo de erradicar o cancro (o que, todavia, não é linear...), mas já não fui a tempo de poupar a minha mama, insubstituível, faça eu o que fizer - como até vai acontecer!
Até hoje, felizmente, eu não tenho sido um caso mau de cancro, mas convinha que os que me rodeiam percebessem de uma vez por todas que cada cancro da mama é um cancro diferente, como cada pessoa é distinta de todas as outras, e também que o cancro não é uma doença, mas um conjunto de doenças, e cada mulher contrai as que lhe estão destinadas, nem mais nem menos. Eu contraí um carcinoma ductal invasivo. Seguiram-se complicações inflamatórias, fibrose na mama reconstruída, acompanhada de dor limitadora, a qual se fez sentir logo na fase do expansor e originou uma depressão. E vieram depois, por causa da medicação (Tamoxifeno), os doze quilos a mais, os problemas no útero e nos ovários, que me obrigaram à histerectomia e, à conta dela, à menopausa repentina e precoce, que me tem perturbado 24 sobre 24 horas, com afrontamentos que passam do terrível calor a suores gelados, dos pés até à cabeça ou vice-versa, nem sei...
E, neste momento, apesar de estar batida em cirurgias, a proximidade da sexta em apenas três anos está a provocar-me uma ansiedade que não era costumeira e já desencadeou (digo eu, pois o médico diz que a culpa pode ser duma bactéria bandida ou da demasiada acidez dos sucos gástricos) por aqui uma úlcera gástrica que espero resolver antes da operação.
Mas, para além da dor física, agora também no estômago, continuam os comentários pouco felizes por parte de pessoas que comigo se encontram fortuitamente. Anteontem, disse a uma colega da minha escola que, em Setembro, lá me encontrarei. E ela retorquiu, perguntando "E é para ficares o ano inteiro?" E lá me senti eu a procurar uma resposta que justificasse o facto de não ter conseguido antes... em vez de lhe atirar logo "Isso é que não posso garantir, pois tanto eu como tu podemos morrer ainda hoje!" Podia ter-me dito que eu era bem-vinda, por exemplo, mas parece que isso não é para mim!...
Pois é, aprendi muito nestes três anos. Sou agora mais sábia. Mas dispensava bem ter percebido que há pessoas que se sentiram ciumentas e outras que tiveram inveja das atenções que ainda outras me dispensaram.
Esta não é, contudo, uma triste verdade só minha. Sei que muitas das minhas companheiras de infortúnio tiveram também outro infortúnio, procedente do primeiro e que consistiu na perda de amigos que não aguentaram o protagonismo de uma mulher a lutar contra um cancro na mama!
É a vida!