Fui educada no seio de uma família católica praticante, fui à missa aos domingos, no Natal, na Páscoa..., desde pequena até deixar o CNE (Corpo Nacional de Escutas), quando já era casada, pela Igreja, e já perfizera 30 anos de vida, e os meus quatro filhos foram todos batizados.Todavia, a entrada na minha quinta década de existência, que, à partida, me prometia (pelo que se ouve dizer) os melhores anos até então, aqueles em que, ainda não sendo velha, a pessoa já tem experiência de vida suficiente para aproveitar, de uma forma sábia, o facto de estar viva , trouxe-me uma catadupa de desilusões relativamente à existência, que me desnortearam durante muito tempo. Falo de quase oito anos de aprendizagens forçadas e fortuitas, as quais provocaram mudanças radicais na minha maneira de olhar, sentir e agir sobre o mundo...
As surpresas relativamente ao conhecimento de pessoas que estavam garantidas como parte de mim, o modo como os agentes da medicina desumanizam (ou não humanizam!) a relação com os seus doentes, a intolerância de imensos seres que me rodeavam relativamente a conversas sobre o assunto 'cancro', a incredulidade de alguns relativamente ao facto de eu ter tido necessidade de estar quase três anos em casa, a impetuosidade com que muita gente faz comparações, pensando que sabe do que fala, mas sem saber... E o corpo a ser mutilado, a obrigatoriedade de lidar com essa realidade (olhar e ver, resolver problemas de vestuário de todos os tipos...), as sucessivas intervenções cirúrgicas, os pós-cirúrgicos, que nunca estão resolvidos antes de, pelo menos, seis meses decorridos, a necessidade de reinventar a relação sexual...), os tratamentos, a carecada, os efeitos secundários da químio, os efeitos secundários da rádio, os azares em cinco dos seis pós-operatórios (estou ainda a viver o mais recente desses azares), os doze quilogramas a mais, provocados pela ingestão diária do medicamento que trava a produção de estrogéneos, para prevenir uma recidiva de um cancro hormonodependente... tudo isto e, talvez, muito mais, que agora não me vem à mente, contribuiu para uma "desaprendizagem" de vida, difícil de admitir e de gerir, contribuindo, também este fator, para a depressão profunda que, felizmente, já lá vai.
A doença foi encarada por mim com a naturalidade de qualquer coisa má que nos acontece e que exige o nosso empenhamento e toda a nossa disponibilidade (aquela disponibilidade que nos obriga a encararmo-nos como o centro das nossas atenções, ficando até os filhos para o plano que for possível, em função da nossa recuperação...), para ser resolvida. Nunca pensei que iria morrer, talvez até tenha sido demasiado otimista, pois, olhando para trás, percebo que devo ter pensado que, com a mastectomia e a reconstrução imediata, usando silicone, tudo ficaria resolvido - sem ignorar a eventual necessidade de químio e rádio, claro.
Nada tem sido fácil, nestes três anos. E as fases por que passei foram muitas, incluindo seis recomeços, seis vezes que me ergui de quedas, com características idênticas, mas sempre com muitas características diferentes, também.
Neste tempo, em termos de relações humanas, tive várias experiências distintas: afastamento de pessoas de sempre, tendo, algumas delas investido em novos relacionamentos, ligação virtual e, posteriormente, real, a pessoas que desconhecia, sendo que, algumas já se foram e outras ficaram, têm estado, têm sido! E, também, pessoas que dizem que têm rezado por mim, algo que, há muitos anos não faço por ninguém, nem pelos meus filhos, quando estiveram internados, nem por mim própria, em nenhuma das minhas visitas a blocos operatórios.
Há quase uma legião de tias (minhas e do meu marido), para além da mãe e da sogra (e ainda outras pessoas) que rezam por mim há muito tempo. E eu agradeço-lhes carinhosamente, sem mais pensar no assunto. Mas a verdade é que eu entro sempre descontraída no bloco (desde o dia em que sabia que me iam cortar uma mama) sem pensar em mais nada a não ser que se faça o que tem de ser feito, e recordo todos os rápidos adormecimentos resultantes das anestesias como momentos de entrada na calma absoluta. Tanto assim é, sempre, que, se por ali eu me vier a ficar algum dia, terei deixado esta vida de uma forma desejável.
Temos, portanto, que eu não temo cirurgias em si, mas, do pós cirúrgico, só gosto dos primeiros tempos, em que o sofrimento costuma ser em maior volume, mas as atenções para com o doente, quer por parte das equipas hospitalares, quer por parte das familiares (e de amigos...) são consideravelmente apreciadas por mim.
A quem me considera "menina mimada" eu até diria que, apesar de ser mimada pelos que me amam, de facto, esse não é o mimo que se obtém quando se está doente e tratam de nós, fazendo-nos aquilo que nós costumamos ter de fazer. E isso é tão bom na doença... Isso e as palavras especiais, que certas pessoas conseguem encontrar, para nos oferecerem nesses tempos duros. Especiais, mas não lamechas; especiais, mas concretas, específicas, íntimas, de quem se preocupa em saber o que mais faz falta a quem está em sofrimento.
Essas palavras especiais eu sinto profundamente e agradeço eternamente, se me as dirigirem, sinceras, quentes... As orações das tias eu também agradeço, pois é a maneira que elas têm de me demonstrar que se preocupam comigo e que me desejam tudo de bom. Todavia, não me ligo a quaisquer palavras, sejam elas orações conhecidas ou orações espontâneas, no sentido de pensar que elas têm qualquer poder para garantirem qualquer espécie de sucesso. E foi com a minha mãe, que continua a ir à missa, ao terço, às procissões... e a rezar, que aprendi isto. Disse-me ela um dia: "Se rezar desse o resultado que nós pretendemos, o meu pai não tinha morrido quando eu ainda era jovem, pois eu rezei tanto para que Deus não o levasse..."
O que se passa comigo agora é tão simples e tão duro quanto isto: Não acredito em nada nem em ninguém (quem estiver a ler isto que me perdoe, se puder), pois nada daquilo em que me ensinaram a acreditar, nem as rezas das tias, nem as palavras que me pareceram de amizade tiveram qualquer sucesso, se pensarmos no que era pretendido. Mas, para mim, isso até é lógico, pois há algo em que creio seriamente: é que a nossa hora de partida está programada, como esteve a de chegada, por muito que se possa contrapor...
Dirão, talvez, que, se assim é, é porque acredito em alguma transcendência. Acredito, sim. Mas não sei o que é, nem me preocupo com isso. Talvez até acredite só por necessidade de satisfazer a minha curiosidade permanente em conhecer as razões de tudo e mais alguma coisa, tendo de admitir que há verdades que não consigo explicar... Acredito no Destino, portanto, e que contra ele não se luta, até porque o Destino é algo desconhecido e contra o desconhecido é difícil escolher armas adequadas...
E quanto às minhas tão amadas palavras, digo que sei lá se ainda as amo! Não consigo deixar de as utilizar, mas, se é amor o que lhes tenho, já duvido muito, pois já sofri muitos dissabores à custa da maneira como interpretaram o modo como eu as usei...
Há muito pouco tempo, uma amiga disse-me que a realidade não existe; o que existe é o modo como cada um de nós vê, interpreta os acontecimentos... Talvez ela até tenha razão. Convirá é assumir que esse postulado, se é válido para alguém, é, necessariamente, válido para toda a gente..., nomeadamente para dois observadores de determinada circunstância.
Pensemos, então, só como exemplo, na circunstância de nos cortarem uma mama! E digamos: esta realidade não existe; o que existe é o modo como cada um de nós a vê, a sente, a interpreta, a vive!...
Curioso, não é!? Alguém pensará que a pessoa a quem levaram a mama poderá sentir este facto (se não é realidade, poderemos chamar-lhe 'facto'?!) do mesmo modo que os seus familiares, amigos, amigas, equipas médicas?! Não, pois não!? Mas deveria?! Ou é perfeitamente natural que quem mora num corpo que foi mutilado tenha uma visão desse facto consideravelmente mais sofredora do que qualquer outra pessoa, por mais chegada que seja?! E é ou não natural que precise de algum apoio extra..., nomeadamente de desabafar, e que se entristeça e se sinta sozinha e abandonada, se isso não acontecer, até porque quando esse sofrimento físico (que afeta muito a psique) não existia, essa pessoa era normalmente solicitada?!...
Rezas, crenças, palavras amigas... não são mais do que inerpretações pessoais, perspetivas individuais do que acontece ou poderá vir a acontecer! Será?!...
Já quanto a dores físicas e psicológicas sentidas pelo próprio... Bem, eu digo, já vacinada contra as pessoas que me consideram lamechas, que já sofri um bom bocado, ao ponto de me apetecer trocar o que sentia por "alguns anos de descanso eterno", como escrevi no post anterior. Mas será que isso que senti no corpo, na alma e na mente foi tudo (e ainda está a a ser) ilusão minha? A nossa vida será, afinal, uma imensa ilusão? Se o for, será para todos, não?! Ou serei eu uma ave rara?!...