Ultimamente tenho andado meia chateada e revoltada, com as sensações de incompreensão e solidão do costume. Não estou infeliz, nem deprimida, continuo a sair à rua apesar dos -3° de temperaturas máximas, e esta semana até trabalhei um bocadinho, o que fez sentir ligeiramente orgulhosa de mim própria. Escrevi postais aos amigos, fui às compras, limpei a casa, e comprei um bilhete de avião para Veneza. Até foi uma boa semana. Então porque é que continuo a ter sentimentos destes, de distâncias, de descrença, de insegurança?
Irrita-me cada vez que leio testemunhos de sobreviventes de cancro que só falam do apoio incondicional da família e dos amigos, do amor que sentem à sua volta, do amor que eles próprios lhes dedicam, da felicidade que é viver um dia de cada vez. Eu devo ser uma criatura rara e disfuncional, porque a mim o amor custa-me a sair, não acredito na felicidade como os outros a pintam. O clássico casar e ter filhos and live happily ever after não me atrai, e nunca pensei que me calharia na rifa. São coisas com as quais não consigo lidar. Não gosto de me chegar perto, não me dou suficientemente aos outros, sou muitas vezes um bloco de gelo que não gosta de contacto físico lamechas. Claro que a Psicologia explica bem isto, traumas de infância, mecanismo de protecção, etc., etc., eu sei isso tudo, já percebi. O que me irrita é a ditadura do positivismo e da importância dos outros no processo de luta e de sobrevivência ao cancro; Como se fosse possível pensar positivo todos os dias. Não é. Como se fosse possível não ter momentos down, de duvidas, de um medo atroz que nos serra a garganta e as tripas, e que a mim me traz insónias. Parece também que sou obrigada a aceitar os outros como eles são, a aceitar todas as manifestações de carinho, mesmo que acompanhadas de um lado negro que por vezes é muito mais prejudicial do que o suposto carinho que me dão. Eu não sou uma boneca de porcelana! Sou uma boneca de trapos, com personalidade, com pensamento próprio, com sentimentos, com uma forte dose de auto-confiança, autonomia e independência! Como se me fosse acontecer uma desgraça, como se chamasse a mim as trevas de uma morte lenta e sofrida de cancro, porque não soube aceitar o amor que me dão. Como se todo o amor fosse bom, ou melhor, como se todos os sentimentos confundidos com amor fossem bons para a alma. E como se isso, por si só, curasse o cancro...
Recuso-me a viver nessa ditadura do devias, podias, tens de. Merda para isso tudo! Eu sei que não posso controlar tudo na minha vida, infelizmente aprendi isso desde o momento do meu diagnostico em 2009. Mas há coisas que eu posso controlar. Que eu devo controlar. Porque é que não me deixam? Porque é que sou tão mal vista e tão mal aceite se escolho fazer as coisas à minha maneira? Porque é que ainda continuam a achar que eu não o devia fazer, que não tenho esse direito? Gostava de saber se diriam o mesmo a uma pessoa adulta saudável -se lhe diriam que ela não tem o direito de fazer escolhas que dizem respeito à sua própria vida!
Com uma certa dose de arrogância e auto-estima, reivindico o direito às minhas decisões! E estou certa que eu, mais do que ninguém (incluindo o meu querido Dr Lambard), sei o que é melhor para mim. Não percebo porque é que isto é tão difícil de entender... A argumentos como "estás a pôr em risco a tua vida", eu respondo: "não sou eu, o cancro é que está a pôr em risco a minha vida". E se a pessoas que me dizem estas coisas tivessem um bocadinho de noção e olhassem para as suas próprias vidas veriam como também estão a pôr as suas vidas em risco com o facto de fumarem, beberem demais, terem excesso de peso e não fazerem exercício físico.
Ao ter decidido não colocar a sonda naso-gástrica, não remover o gânglio do mediastino, não tentar protocolos experimentais por enquanto, eu não estou a pôr em risco a minha vida. Estou pura e simplesmente a viver. A fazer o meu melhor com a merda de contexto e de circunstâncias que me foram dadas aos 27 anos. And I'm doing a damn good job!
1 comentário:
Também gostei!
Um misto de sentimentos reais que se aplicam no dia a dia.
Depois do cancro a vida muda em muita coisa para pior...tentamos dar-lhe mais cor mas de nada adianta.
O Dr Lambart que ela fala, foi o meu cirurgião quando me retiraram o tumor ele e o Dr Canto Moniz já reformado.
Beijinhos
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