Claro que hoje vejo a vida de outro modo.
Há pouco mais de dois anos, eu era muito mãe, muito professora, muito dona de casa, muito esposa; hoje, eu sou muito eu, com tudo o que isso tem de melhor e de pior relativamente à minha verdade de tantos anos, que sinto ter ficado irremediavelmente perdida.
Quando fiquei doente, interiorizei (talvez para minha defesa) que a doença tinha chegado para que eu me tornasse numa pessoa melhor. Dois anos volvidos, eu sou melhor e sou pior, sendo a mesma, mas sendo outra.
Não dou mais valor à vida, por ter tido um cancro. Dou menos! A vida é boa quando estamos bem. E estamo-lo sempre intermitentemente, mesmo quando não temos doença nenhuma declarada. Quando temos, passa-se o mesmo.
É claro que se amanhã, pela manhã, vocês passarem no quiosque e comprarem uma revista de colunáveis, o mais certo é encontrarem N beldades assoladas por maleitas em respostas cem por cento positivas relativamente ao que se aprende e se melhora em termos existenciais, após uma doença que se vence. Mas eu nem sequer sei o que é isso de vencer uma doença. Até porque já eu estava doente e sentia-me óptima e agora, que estou boa(!), sinto-me um ser que tem uma dor física (e psicológica) como companhia inseparável para o resto da vida.
Claro que hoje vejo a vida de outro modo. Apenas no sentido em que 'agora' é o tempo que eu tenho para viver. Portanto, mais vale vivê-lo com o mínimo de esforço e o máximo de prazer, numa relação equilibrada entre as duas realidades.
Tentando não prejudicar ninguém (até porque tenho cinco eleitos sem culpa), eu não faço planos para o futuro. O que for será. Porque a vida continua sempre, eu só já tenciono vivê-la em cada novo dia em que acordo.
Nunca me senti tão sozinha desde que fiquei de baixa. Vejo, de facto, a vida de outra maneira: vejo a correria em que eu também sempre andei e em que não quero voltar a andar. Vejo o stresse de todos e o desprazer obtido naquilo que fazem para sobreviver. Vejo que ninguém tem tempo para oferecer. Por isso, as pessoas até vão gostando de trabalhar, mesmo que estupidificantemente - pois quem trabalha vai-se relacionando, ainda que apenas num nível de superfície.
Claro que hoje vejo a vida de outro modo. Neste momento, é como se a visse através de um vidro ou como se ela fosse o filme a que eu estou a assistir. E não gosto do que vejo, apesar de amar a Natureza e de ter saudades da praia e do campo.
Também tenho saudades das pessoas, mas essas eu sei que já morreram. Só me restam o mar e as árvores, mas eu ainda nem consigo entregar-me a eles. E, como o que vivo é o presente, não sei se voltarei a sentir o prazer que eles já me proporcionaram.
Desculpem o desabafo, mas convém que a verdade seja inteira, que é o mesmo que dizer 'isto do cancro é uma coisa como outra qualquer e a felicidade não tem nada a ver com o assunto'! Sou tão feliz quanto antes. Globalmente feliz, o que quer dizer 'com intermitências de felicidade'.
domingo, 28 de março de 2010
Ver a Vida de Outro Modo
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2 comentários:
É claro que a doença te fez ver a vida de outro modo, mas, se não fosse ela, a própria vida te faria vê-la de outro modo. Só chegaste a esse grau de sapiência porque tinhas de lá chegar, de uma forma ou de outra, mais cedo ou mais tarde.
Nascemos sozinhos, vivemos sozinhos e morremos sozinhos, por mais que sejam os seres que coabitem na vizinhança do corpo. Essa é a nossa essência: vivemos gregariamente sozinhos. Só nos apercebemos verdadeiramente disso se, por qualquer razão - entre elas, a doença física ou psíquica -, pararmos enquanto os outros continuam a marcha.
Os outros não morreram, apenas vivem as suas próprias solidões.
Tens razão, Vítor.
O problema é essencialmente o de eu ter parado, enquanto todos os outros continuaram a sua marcha. Fui eu que morri e não eles. E serei eu a ter de ressuscitar!
Detesto solidões, sabes!?
Imagino-me feliz numa profissão em que o trabalho seja efectivamente de grupo, onde cada indivíduo tenha funções distintas e vitais para o sucesso do resultado final de cada obra...
E imagino as discussões à volta de cada um dos projectos, em frutuosas reuniões, em que o próprio cansaço do trabalho funcione como motor de relaxamento.
Imagino-me a chegar a casa e a não ter nada para fazer para o dia seguinte, porque todo o dia foi de trabalho a sério, deliciosamente empenhada.
Imagino-me onde sei que nunca estarei, porque são poucos os privilegiados que conseguem o estatuto invejável da fruição da vida de uma forma francamente produtiva sem caminharem para o esgotamento.
Imagino-me a trabalhar. Porque estou farta de estar parada. Mas não é ao que já tive (e que hoje até está bem pior) que eu queria entregar-me!!!
É verdade que todos somos seres solitários, mas há uns mais solitários do que outros...
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