(em jeito de 'continuação' do post de 11 de Janeiro)
Era uma vez uma menina, de caracóis largos e soltos, que vestia sempre brincos. Desde os vinte anos que se sentia nua quando, em situação social, os seus lóbulos não ostentavam um ornamento condizente com a indumentária. Lembrava-se ainda do dia em que o seu pai, impotente perante a maioridade da filha, saíra simplesmente de casa para uma volta ao quarteirão que lhe permitisse "arejamento", após um discurso aceso sobre o acto contra-natura de furar as orelhas.
Divertira-se a menina nessa primeira "intervenção cirúrgica" de sua consciência e de seu livre arbítrio sobre o seu corpo.
Agora chamavam-na à pressa: O Dr. pede para vir já. Obedeceu! A menina estava doente.
No regresso, estacionou na garagem e, caso raro, estavam todos ali. Desligou a ignição. Não saiu do carro. Já tinha limpo a lágrima antes de carregar no comando. Comunicou: Tenho um cancro na mama. Vou ser operada e vou ficar boa. De imediato, tudo regressou ao normal. Só ao jantar voltaram a falar, com todos os pormenores. Aos pais ligou só depois. A conversa com o pai precisava ser acautelada. Era necessário não o deixar teorizar. Contudo, mais impotente que nunca, voltou a não poder ficar calado. E ralhou, opinou, pediu, até implorou. Desde o discurso sobre a incompetência até aos joelhos no chão para que a menina contactasse com a pessoa certa...
Misturava-se impaciência com calor no ouvido (do telefone colado há tanto tempo), uma bexiga transbordante, flashes de pensamento em atropelo, o marido na sua frente, a olhá-la, simplesmente. Tinha um bloco na mão e uma esferográfica com várias cores, que se escolhem com o polegar... como antes do tempo em que furara as orelhas! Ia apontando nomes, datas, locais. E ia riscando!
No fim do dia, a menina despiu os brincos desse dia. Olhou-se ao espelho e viu-se igual. Porque haveria de tornar-se diferente?! Chorou com o marido sem perceber bem porquê. Teve uma insónia. E comeu muitas bolachas de chocolate.
segunda-feira, 18 de janeiro de 2010
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